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Luther Blissett, de fracasso a herói cult

Quem é Luther Blissett? Uma primeira resposta poderia ser a seguinte: é um ex-jogador inglês, de origem jamaicana, que atuou em clubes do Reino Unido e também no Milan. Uma resposta, mais crítica, poderia incluir que Blissett teve uma passagem tão ruim pelo futebol italiano que, por algum motivo, acabou tendo o seu nome associado a um projeto artístico e político de um grupo de ativistas da Bota. Como isso pode ter acontecido? Nós contamos agora.

Nascido em Falmouth, pequena cidade da Jamaica em que também nasceram os velocistas Usain Bolt e Ben Johnson, Blissett foi morar na Inglaterra quando ainda era criança. O atacante acabou sendo selecionado para as categorias de base do Watford em 1974, quando tinha 16 anos, e estreou pelo time principal no ano seguinte.

Ao longo de oito anos no clube, Blissett atuou em quatro diferentes divisões e ajudou os Hornets a chegarem à elite. Na estreia no Campeonato Inglês, o anglo-jamaicano anotou incríveis 27 gols, foi o artilheiro do torneio e levou o Yellow Army ao vice-campeonato e a uma vaga na Copa Uefa. Com tantas credenciais, recebeu convocações para a seleção da Inglaterra (foi um dos primeiros negros a serem convocados) e chamou a atenção do Milan, que queria um autêntico goleador.

Não eram tempos de vacas gordas para o Milan – na verdade, o Diavolo vivia um dos piores momentos de sua história. O clube havia vencido apenas seis títulos nos últimos 15 anos (um scudetto, no final dos anos 1970) e sido rebaixado em 1980, por participação de jogadores no escândalo Totonero, e novamente em 1982, dessa vez por mau rendimento no campo. Na volta à elite, precisava se reforçar de maneira inteligente, pois o momento financeiro também não era dos melhores. Em 1983, Blissett chegou como a principal contratação do rossoneri, ao lado do experiente lateral direito belga Eric Gerets e do jovem zagueiro Filippo Galli – o último se tornaria bandeira do clube. O inglês, porém, foi uma decepção retumbante – assim como Gerets, ícone de uma boa geração da Bélgica.

Blissett foi um dos reforços do Milan em 1983 (imago/Buzzi)

Pela constituição física que vemos nas fotos do jogador, dá para notar que Blissett era um atacante de área clássico, com bom poder de proteção na bola, força física e cabeceio acima da média, além de potência em seus movimentos. No entanto, raras vezes ele conseguiu colocar isso em prática na Itália e ficou mais conhecido por perder gols: foi até apelidado de “Callonissett” pelo jornalista Gianni Brera, em referência ao atacante Egidio Calloni, famoso por errar demais à frente do gol adversário. O curioso é que, mesmo com o desempenho bem abaixo da média, Blissett foi peça fixa no time de Ilario Castagner e atuou em todas as partidas do Milan naquela temporada – 30 na Serie A e nove na Coppa Italia.

O centroavante inglês estreou na fogueira. O poderoso Milan foi goleado por 4 a 0 pelo pequeno Avellino, fora de casa, e ele mal viu a cor da bola. No jogo seguinte, anotou seu primeiro gol com a camisa vermelha e preta, num 4 a 2 contra o Verona: aproveitando sobra de cruzamento na área, Blissett emendou um forte chute de canhota, sem chances para o goleiro Claudio Garella. O atacante voltou a marcar na 7ª rodada, contra a Lazio, na 15ª (Udinese), na 28ª (Torino) e na 29ª/penúltima (Pisa) – também fez um nas oitavas de final da copa, diante do Vicenza. Apesar de o suposto bomber da equipe ter decepcionado, o Milan ainda acabou o campeonato na 6ª posição, com os mesmos 32 pontos de Verona e Sampdoria.

O fraco desempenho de Blissett fez nascer uma lenda urbana: dizia-se que o atacante tivesse sido contratado por engano pela diretoria milanista, que na verdade pensava em contratar John Barnes, seu colega de Watford e English Team. O jornalista italiano Gabriele Marcotti, porém, esclarece que isso é mito: “O Milan queria um goleador e Barnes era ponta-esquerda. Além disso, qualquer um vê que os dois não se parecem fisicamente”. De qualquer forma, Blissett durou apenas um ano em Milão, e na janela de transferências da temporada 1984-85, voltou para o Watford. Curiosamente, outro inglês chegou para substitui-lo: Mark Hateley, do Portsmouth – este, com um pouco mais de sucesso.

Inglês de origem jamaicana marcou só seis gols pelo Milan (imago/Buzzi)

Pelos Hornets, ele voltou a fazer gols e anotou 21 em seu ano de reestreia. Ao todo, Blissett teve três passagens pelo Watford e se tornou recordista em presenças (503 partidas) e gols (186) pelo clube. No final da carreira, ainda teve muito sucesso pelo Bournemouth, na segunda divisão, e rodou por várias equipes de divisões inferiores. Também foi técnico do Watford e de times pequenos e até foi sócio de uma escuderia no Campeonato Britânico de Carros de Turismo. Porém, na Itália, ficou conhecido de outra forma.

Dez anos depois de deixar Milão, o nome “Luther Blissett” voltou a repercutir na Itália. Entre 1994 e 1999, várias ações de coletivos anarquistas constituíram o Luther Blissett Project. Os ativistas, protegidos pelo anonimato, usavam o mesmo nome que o do jogador como uma identidade múltipla – da mesma forma como, por exemplo, os zapatistas mexicanos fazem com o Subcomandante Marcos ou como o personagem V, em V de Vingança – com o intuito de fazer provocações artísticas, quebrar hierarquias e criar uma contracultura. Obras de literatura política, hacktivismo, eventos situacionistas e de terrorismo poético – como espalhar falsas notícias para criticar a mídia de massa – eram atribuídos a Luther Blissett. Certa vez, quatro jovens sem documentos de identificação foram parados em um trem e responderam que eram Luther Blissett. Foi uma febre da década de 1990.

Até hoje ninguém apareceu para dizer porque os ativistas escolheram o nome de Blissett para suas ações. À época se especulou que os anarquistas fizeram isso como uma resposta à extrema-direita, pelo fato de o inglês ter sido um dos poucos jogadores negros do futebol italiano à época. No entanto, é mais provável que o nome do jogador tenha sido escolhido pelo fato de a palavra “anonimo”, em italiano, também significar algo sem personalidade, que passa desapercebido – assim como o inglês, quando esteve no Milan. De certa forma, o atacante se tornou sinônimo de um “qualquer”, um cara comum e sem personalidade – ideal para simbolizar uma identidade em aberto e compartilhada por diferentes grupos. E, se a gente pensar bem, em alguns aspectos da vida, somos todos Luther Blissett.

Luther Loide Blissett
Nascimento: 1º de fevereiro de 1958, em Falmouth, Jamaica
Posição: atacante
Clubes: Watford (1975-83, 1984-88 e 1991-93), Milan (1983-84), Bournemouth (1988-91), West Bromwich Albion (1992), Bury (1993-94), Derry City (1993), Mansfield Town (1993-94), Southport (1994), Wimborne Town (1994-95), Fakenham Town (1995-96) e Chesham United (2007)
Carreira como técnico: Watford (1996-2001), York City (2002) e Chesham United (2006-07)
Seleção inglesa: 14 jogos e 3 gols

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