Extracampo

O fim da infância: por que dói tanto dizer adeus a Francesco Totti

Voltei-me, e vi debaixo do sol que não é dos ligeiros a carreira, nem dos fortes a batalha, nem tampouco dos sábios o pão, nem tampouco dos prudentes as riquezas, nem tampouco dos entendidos o favor, mas que o tempo e a oportunidade ocorrem a todos.
Eclesiastes 9:11

Entre a mitologia e a literatura, o apego a um personagem só se concretiza de fato se este apresentar alguma fraqueza. Um personagem desprovido de falhas não pode ser humano, ou melhor, um humano convincente. Se não o for, não há como estreitarmos um laço de empatia. Torna-se desinteressante: qual é a graça, afinal, em acompanhar os desdobramentos narrativos de alguém perfeito em suas características morais, intelectuais e físicas? Para tanto, o personagem não precisa ser propriamente humano, isto é, a regra vale para criações animais, alienígenas ou mesmo divindades. Não à toa, a mitologia grega como um todo nos é tão palatável até hoje: os traços mundanos, principalmente aqueles sórdidos, espalham-se em deuses que influenciam boa parte das histórias contemporâneas.

Zeus é um caso clássico. Não obstante a posição de rei dos deuses, seu comportamento punitivo provavelmente afastaria a vontade de tomar um café com tranquilidade diante de sua presença. Um de seus castigos mais famosos diz respeito a Sísifo (imagem no topo), o rei de Corinto que testemunhou Zeus – em forma de águia – raptar Égina, filha do rio Asopo. Em troca de uma fonte de água, Sísifo contou a Asopo o que havia visto, e isso naturalmente despertou a ira do deus dos céus. Este último ordenou que a personificação da morte, Tânatos, levasse Sísifo ao inferno. Acontece que Sísifo enganou a morte ao elogiar a beleza de Tânatos e, sob o pretexto de lhe enfeitar, vestiu um colar em seu pescoço. O colar era uma coleira, e assim o consorte de Hades ficou impossibilitado de agir.

Enganar a morte, claro, não poderia ser um movimento bem-sucedido por muito tempo. Sísifo foi descoberto. Astuto, ele ainda a enganaria uma segunda vez, escapando do mundo inferior para viver na Terra o resto de seus dias. Mas a conta um dia chegou: ao padecer de velhice e (enfim) habitar o submundo, Sísifo foi condenado a conduzir uma pedra de mármore ao topo de uma montanha com as próprias mãos. Ao se aproximar do cume, no entanto, a pedra rolava serra abaixo, fazendo com que Sísifo tivesse que refazer a tarefa – indefinidamente. Enganar os deuses, por fim, lhe valeu a punição severa.

O paralelo entre Totti e Sísifo é inevitável. A lenda romanista chegou perto do cume em diversos momentos, carregando um peso imenso sobre si. Enquanto seus rivais tinham – lá vai – Zidane, Del Piero, Henry e Inzaghi; Salas, Mancini, Boksic e Vieri; Ronaldo, Baggio e Zamorano; Boban, Donadoni, Weah e Bierhoff; Verón, Crespo e Asprilla; Rui Costa, Batistuta e Edmundo; Totti teve Delvecchio, Bartelt e Fábio Júnior. Nos bons momentos, Balbo e Montella (e, ok, Delvecchio). Só então desfrutou de parcerias melhores e, não por acaso, foi campeão italiano. Jogou sua primeira Liga dos Campeões aos 26 anos, idade ridícula para um atleta de seu nível. Desfalcou, lesionado, boa parte de uma campanha que por muito pouco não concretizou o bicampeonato logo em seguida. Todavia, a pedra rolou de novo, e assim ele recomeçou a tarefa.

A celebração ao grande ídolo aconteceu no local mais apropriado: o Olímpico (Getty)

Posteriormente, enfrentou uma Inter que ao longo dos anos dispôs de Crespo, Adriano, Júlio Cruz, Ibrahimovic, Eto’o, Milito e Balotelli. Totti teve Taddei, Mancini, Vucinic, Júlio Baptista e Ménez – a maioria até muito bem, no limite de seus potenciais. Outro título quase veio em 2010, mas um desastre em casa, protagonizado por Cassano – seu maior discípulo –, impediu tudo. Na proximidade com o cume, outra queda da rocha. Não há espaço para margem de erro, apenas outro recomeço – ele foi vice-campeão oito vezes, contra apenas um título. Também não há segredo aqui: é grotesco pensar no que Francesco poderia ter feito a mais. Trata-se de um raciocínio completamente invertido. Não foi ele quem conquistou pouco – foi a Roma, uma instituição limitadíssima, que só alçou voos maiores graças a ele. Ter permanecido nessa instituição é a verdadeira insanidade da narrativa toda, um épico indiscutível.

Francesco Totti enganou o tempo (e, portanto, a morte) pela primeira vez em 2006, quando sofreu a lesão mais grave de sua carreira. Voltou a campo em tempo recorde e conquistou a Copa do Mundo com diversos pinos no tornozelo. No ano seguinte, aquele que era tido como acabado encerrou a temporada como artilheiro da Serie A e Chuteira de Ouro do continente. Enganou a morte pela segunda vez na temporada passada, quando, aos 39 anos – e novamente tido como acabado – acumulou participações decisivas semana após semana, obrigando uma diretoria imperdoavelmente reticente a lhe renovar o contrato para um último ato. Com seu último ato, enfim, a demonstração final de grandeza: Totti, um deus para os romanistas, expôs sua maior fragilidade em alto e bom som, por meio de uma carta de despedida:

“Perdoem-me por não dar entrevistas e esclarecer meus pensamentos, mas não é fácil apagar a luz. Estou com medo. Não é o mesmo medo que você sente quando está de frente para o gol, prestes a cobrar um pênalti. Desta vez, não sou capaz de ver como será o futuro através dos buracos na rede. Permitam-me sentir medo. Desta vez, sou eu que preciso de vocês e do amor que vocês sempre demonstraram por mim. Com seu apoio, eu vou ser bem-sucedido em virar a página e mergulhar em uma nova aventura”.

Como eu ou você, Totti tem medo. Medo. Não só não está preparado, como pede ajuda. Certamente todos nós estamos familiarizados com essa sensação. O herói se fez humano de maneira humilde, direta e, como consequência, estonteante. “Eu queria fazer isto em uma música ou um poema, mas não sou capaz de escrever nada disso. Ao longo dos anos, eu tentei me expressar através dos meus pés, o que tornou tudo mais simples para mim desde que eu era uma criança”. Evitando a estética, Francesco Totti produziu um dos momentos mais belos de sempre a ocorrer dentro de um estádio. Aqueles que o assistiram certamente sentiram um baque. Mesmo quem lhe designa cólera foi atingido: não há como manter a frieza diante de um inimigo corajoso o suficiente para admitir seu amedrontamento. Admitindo-o, o capitão se expurgou diante de sua plateia. “Afasta, pois, a ira do teu coração, e remove da tua carne o mal, porque a adolescência e a juventude são vaidade” (Ec. 11:10).

Imenso e vulnerável: a despedida de Totti foi uma das mais belas de todo o esporte (Getty)

Totti viveu o sonho do garoto que defende o time do coração, veste uma só camisa e se consagra com a equipe pela qual sofre – e certamente sofreu muito, afinal, é a Roma – desde a infância. Disso todos sabemos, e não há a necessidade de repetir seus números, muito menos as razões pelas quais é adorado. A interpretação onírica de sua carreira é mais que óbvia, e assim foi relatada pelo próprio romano: “nos últimos meses, eu me perguntei por que estava sendo acordado deste sonho. Imagine que você é uma criança tendo um bom sonho… e sua mãe te acorda para ir à escola. Você quer continuar sonhando, tenta voltar para dentro do sonho, mas nunca consegue. Desta vez não é sonho, mas sim a realidade. E você não pode mais voltar para o sonho”.

Descrever um sonho é uma tarefa ingrata. Nunca atingimos em palavras as sensações que Morfeu nos proporciona enquanto dormimos. “Aquela mistura de absurdo, surpresa e espanto numa excitação de revolta tentando se impor, aquela noção de ser tomado pelo incompreensível que é da própria essência dos sonhos”, como se lê n’O Coração das Trevas. O adeus a Totti não nos atinge pela perda técnica. Esse é apenas um dos vagões no comboio da melancolia. Por mais que o romanista tenha exibido um repertório imenso ao longo da carreira, e por mais que ainda imponha lampejos de sua grandeza nos poucos minutos que lhe reservam, nunca faltarão craques ao esporte. E ainda que apenas meia dúzia disponha de tamanha soma entre leitura de jogo e talento em toda uma era, essa meia dúzia existe.

Aquilo que nos mata é o fim da catarse. Por décadas, mantivemos um herói que, uma vez em campo, transportava cada um de nós para a infância. Francesco é a epítome do ídolo, um arquétipo que abandonamos conforme crescemos. Crescer, afinal, nos deixa cínicos, rijos – não necessariamente mais maduros. Criamos barreiras psicológicas que nos impedem de desenvolver ídolos. Não nos entregamos mais, não nos submetemos a adorações. Permanece conosco aquilo que foi plantado quando encarávamos o mundo de maneira mais lúdica e menos lúcida. Crescemos e vemos as pessoas que trazem significado à vida se afastarem; outros, morrerem. Estamos ocupados e não percebemos a existência escapar, mas Totti nos avisava do próprio envelhecimento a cada rodada, muito embora não quiséssemos admitir – ele tampouco. Quando nos damos conta da finitude de um herói de infância, recebemos um memento mori excruciante.

Grande parte dos fãs não tem a menor consciência do futebol sem Francesco Totti – faço parte deste grupo. Todos terão que ressignificar a Roma, e muitos, o esporte em si. Esse processo não é nada indolor. Na história da modalidade, nenhum jogador foi tão importante para um clube por tanto tempo quanto Totti foi para a Roma. Maldini ou Giggs nunca precisaram carregar suas respectivas equipes nas costas, muito menos fazê-lo da juventude aos cabelos grisalhos. Que ele tenha rendido até os 40 anos é também uma mistura de absurdo, surpresa e espanto. Entretanto, “em algum momento da vida, você cresce – isto é que o que me disseram e isso é o que o tempo decidiu. Maldito seja o tempo”. Reencontramos a infância em cada passe inacreditável, finalização certeira e reclamação caricata que Totti nos presenteava. Nos últimos dois anos, reencontramos a infância cada vez que ele levantava do banco de reservas, transformando imediatamente o ânimo dos torcedores ao seu redor. Os mais antigos testemunharam um milagre, reencontrando a infância nos 25 anos em que Francesco Totti trabalhou como atleta profissional.

No ano passado, escrevi que “a partir do momento em que ele abandonar o futebol, um período mágico terá morrido. Tudo será areia, e do reino de Totti restarão apenas ruínas. Os golaços, os lançamentos e até os cartões serão transcritos no universo da memória, onde o tempo não passa e a imortalidade é palpável”. Ontem, chorei como se um amigo tivesse morrido. Sei que muitos também se sentiram assim. Ninguém está pronto, ninguém nunca esteve: apagar a luz, Francesco, de fato não é fácil. Pois “certamente suave é a luz, e agradável é aos olhos ver o sol. Porém, se o homem viver muitos anos, e em todos eles se alegrar, também se deve lembrar dos dias das trevas, porque hão de ser muitos. Tudo quanto sucede é vaidade” (Ec. 11:7-8). O momento mais melancólico da história da Roma chegou, e a estátua de Ozymandias já começa a rachar. Entre estrondos e lamúrios, o demiurgo não tem mais forças, e cada um de nós carrega a própria pedra. A infância, de uma vez por todas, acabou. Encontramos o coração das trevas, agora enfrentando seu postulado: vivemos como sonhamos, isto é, sozinhos.

Adeus, Totti; adeus, futebol. Obrigado pelas lágrimas, obrigado pelos sorrisos. Antes de voltar ao pó, eu só queria viver tudo uma outra vez.

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