Extracampo

Dossiê: Falências à italiana, parte 1

A falência do Parma é iminente: nesta quinta, 19 de março, uma audiência judicial definirá o futuro do clube. Seu presidente, Giampietro Manenti, foi preso nas primeiras horas desta quarta, acusado de utilizar capital de origem ilícita na compra do clube: o plano para mudar os rumos do Parma na verdade seria esquema que usaria o clube para lavar dinheiro de cartões falsos e contas hackeadas – saiba mais. Ele foi preso preventivamente e as investigações estão em curso.

O caso do time emiliano causou furor, pela velocidade dos fatos – até a última temporada, os crociati não pareciam atravessar uma crise financeira –, mas levantou também uma outra questão: porque dentre os países que sediam os maiores campeonatos do futebol europeu é justamente a Itália que, de longe, mais vê equipes entrarem em bancarrota?

Para tentar elucidar os fatos e tentar chegar a um diagnóstico preciso, o Quattro Tratti fez um levantamento para verificar o grau de “infestação” pelo qual passa o futebol italiano. Todo ano, dezenas de equipes de divisões inferiores, profissionais ou semiamadoras, entram com pedidos de falência junto à Federação Italiana de Futebol – FIGC, o que é mais um indício para notar como as estruturas do futebol local andam precisando de mais cuidados.

Porém, como a realidade econômica e administrativa de equipes muito pequenas é bastante diferente de times mais organizados e que passaram pela elite, estabelecemos alguns critérios para deixar os dados da análise mais facilmente digeríveis. Nossa régua foi a seguinte: levantamos quantas equipes jogaram a Serie A desde a sua formação, em 1929, e quantas destas faliram a partir da década de 1980, quando o Campeonato Italiano se tornou o maior do mundo – ao ponto de seleções postulantes ao título da Copa do Mundo (ou mesmo vencedoras) terem jogadores atuando na segundona do Belpaese. O aperfeiçoamento do profissionalismo e a globalização do futebol, que aumentaram a partir desta época e, principalmente, o crescimento da bolha econômica nos anos 1980 e 1990 e o estouro que veio logo depois ajudam a entender as falências, em nosso ponto de vista, e foi por isso que escolhemos este período histórico para situar a análise.

>>> Saiba mais: O que está acontecendo com o Parma?

Chegamos a um resultado assustador. Dos 63 clubes que participaram de ao menos uma edição da Serie A, 40 faliram pelo menos uma vez nos últimos 35 anos – a lista completa, com o número e anos dos processos administrativos, segue abaixo. Ao menos uma vez, porque, pasmem, há times que entraram em bancarrota duas ou três vezes, muitas vezes em um espaço de tempo de apenas cinco anos. O número representa quase dois terços do total de times que já entraram nos gramados da elite da Velha Bota. Somente 11 dos clubes citados não chegaram a jogar a primeira divisão no período da análise. Você imagina o mesmo acontecendo em Inglaterra, Alemanha ou mesmo em Espanha e França? Nenhum país tem mais clubes sendo refundados ou desaparecendo do que a Itália.

No final das contas, restam apenas 23 equipes que participaram da Serie A e não passaram pelo drama da falência em algum momento das últimas três décadas. Algumas dessas instituições chegaram muito perto disso – e temos exemplos de times graúdos, como Lazio, Milan e Roma, que tiveram sérias dificuldades em momentos distintos; os romanos no início deste século e os milaneses na década de 1980, pouco antes da posse de Silvio Berlusconi.

Como mostramos, quebras de clubes na Itália não são novidade. O próprio Parma já faliu uma vez, há 10 anos. O caso do (probabilíssimo) segundo processo de bancarrota do Parma só evidencia como a federação e as ligas não estão atentas a um dos problemas mais antigos do futebol local, que segue presente. Não há como não atribuir uma grande parcela de culpa às entidades que comandam o esporte do Belpaese. Há, no entanto, um conjunto de motivos que levam a situações como estas. Vamos a eles.

Tommaso Ghirardi, o homem que presidiu o Parma de 2007 a 2014 (Calcio Fanpage)

Por que os clubes quebram?

O futebol italiano viveu seus melhores momentos calcado em um modelo de negócio de simples entendimento: o mecenato. Os donos dos clubes, normalmente ricaços apaixonados pela equipe ou pelo esporte em geral, injetavam dinheiro próprio na gestão do clube, para sanar dívidas ou fazer contratações. Um modelo já obsoleto, por causa da crise econômica que atingiu a Itália – com isto, o poder de investimento dos dirigentes diminuiu.

Clubes de futebol na Itália são historicamente ligados a empresas ou famílias ricas, normalmente sócias de algum forte conglomerado industrial. Por exemplo, a Juventus cresceu no berço da Fiat, a Inter era ligadíssima ao grupo Saras, o Milan é uma empresa que faz, efetivamente, parte do grupo Fininvest e o pequeno Sassuolo é do mesmo dono da Mapei. No mecenato, a saúde financeira de um clube costuma estar intimamente ligada ao sucesso das empresas do seu dono.

Foi por isso que a Lazio passou por grave crise financeira quando a Cirio, do seu presidente Sergio Cragnotti, estava à beira da falência. Pelo mesmo motivo, o Parma faliu pela primeira vez juntamente com a bancarrota da Parmalat. Claro, a derrocada das empresas são fruto de má gestão – e nos casos da Cirio de Cragnotti e da Parmalat de Calisto Tanzi, uma administração fraudulenta –, e mesmo se um clube não chega a ter envolvimento com grupos familiares ou empresariais de alto calibre, o que pode determinar sua decadência é uma administração irregular.

Os mecenas estão cada vez mais dissociados do esporte por conta do Fair Play Financeiro da Uefa. O mecanismo obriga os clubes a terem balanços com cada vez menos débitos e, progressivamente, lucro. Ou seja, obrigam, em tese e na prática, cada clube a ter vida própria, no mínimo parcialmente desligada do sucesso empresarial de seus donos, que não podem mais aumentar o capital do clube e realizar compras de jogadores a atacado, com gastos exorbitantes e prejuízos. Pelos preceitos do sistema adotado pela máxima entidade do futebol europeu, o clube deve ser, então, uma entidade autossustentável, que gere receita própria.

Na Itália, o mesmo rigor do FPF não é aplicado, e as equipes precisam apenas provar que tem seus débitos trabalhistas quitados e que seus balanços estão equilibrados, o que é verificado pela Covisoc – Comissão de Vigilância dos Clubes Profissionais de Futebol, instrumento da federação para avaliar eventuais problemas fiscais e econômicos das sociedades.

O problema é que isto ainda é pouco para evitar problemas dessa gravidade. A Covisoc, ao analisar não só os balanços da última temporada do Parma, mas os de anos anteriores dos ducali, recomendou à FIGC um “atento monitoramento” da situação. Afinal, as dívidas, sempre em crescente, chegavam aos 70 milhões de euros. 33 destes somente com fornecedores e serviços terceirizados, muitos dos quais não recebiam há quase um ano, o que chegou a inviabilizar o funcionamento de diversas atividades do clube e levou até à penhora de bens.

Em uma situação normal, qualquer clube poderia tentar solucionar (ou abrandar) o vermelho nas contas vendendo jogadores, antecipando receitas (como direitos de TV), contraindo empréstimos ou via injeção de verba por parte dos acionistas ou por novos contratos de patrocínio. No caso do Parma, o ex-presidente Tommaso Ghirardi, já decidido a deixar o comando dos emilianos, nada buscou. E nem a FIGC e nem a Liga da Serie A exigiram garantias de que o clube não entraria em parafuso durante o campeonato. Falta controle e mais rigor na fiscalização.

Repetimos o que escrevemos duas semanas atrás: o livre mercado no futebol, sem responsabilidade, já mostrou que a bolha cresce e estoura, e quando isso acontece, pouca coisa sobra. O futebol italiano é o melhor exemplo disso: depois dos anos de ouro, viu centenas de clubes se endividarem e falirem.

Hoje, a crise na Europa é ainda maior do que em anos anteriores, e a Itália é um dos países mais afetados, seja na economia, seja no futebol. O momento de crise fez com que o pensamento de sustentabilidade no esporte ficasse mais forte no continente como um todo, o que gerou a introdução do FPF, por exemplo. Os italianos, no entanto, engatinham no assunto – para não dizer que andam até na contramão.

Lucarelli, capitão do Parma (Getty Images)

A postura da FIGC e da Liga da Serie A logo quando o caso Parma eclodiu sugere que pouco será feito. Primeiro, os órgãos se eximiram de comentar sobre o assunto, e depois, em nota oficial praticamente tiraram o corpo fora, afirmando que as sanções com multas, perda de pontos e da licença Uefa eram suficientes para o caso.

Seria mesmo difícil esperar algo diferente de quem comanda um sistema que permite que um clube da primeira divisão seja vendido duas vezes ao custo de 1 euro, e no espaço de dois meses. E as transações aconteceram sem que houvesse qualquer verificação anterior por parte das autoridades sobre a capacidade administrativa (sobretudo do ponto de vista financeiro) dos novos donos. Em nenhum momento se indagou se os compradores teriam condições de tocar o barco – foi descoberto que o patrimônio declarado da Dastraso Holding e do Mapi Group, que compraram o Parma, um após o outro, não são compatíveis para a administração de uma entidade esportiva de elite.

O futebol italiano continua cheio de problemas e a sensação é similar à que temos no Brasil com a CBF: a de que um resultado esportivo positivo para o futebol italiano em âmbito internacional só acontecerá graças a esforços de um pequeno número de clubes ou da própria seleção. Enquanto o Campeonato Italiano definha do ponto de vista administrativo e moral, com escândalos extracampo em série, outras grandes ligas europeias continuam se valorizando e aumentando o abismo em relação à Serie A.

Pequeno Treviso jogou Serie A e faliu duas vezes após a queda (Getty Images)

Exceção ou nem tanto? Falência dos pequenos tem origem diferente
A falta de rigor na fiscalização às contas dos clubes e o estouro da bolha são realmente dois dos maiores problemas que ajudam a compreender a crise no futebol de elite da Itália. No entanto, um outro problema, com origens em aspectos sociopolíticos do país, ajuda a compreender um pouco as falências da maior parte dos clubes da Bota, aqueles que jogam as divisões inferiores. O provincianismo aliado à desorganização dos campeonatos. Na Serie B, por exemplo, nesta edição times da ponta e do fundo da tabela já apresentaram problemas. O lanterna Varese – time da cidade homônima, vizinha à Milão – passa por dificuldades e já foi penalizado em 3 pontos por não pagar dívidas. No início do campeonato, o Bologna, vice-líder, também perdeu um ponto por isso. Porém, foi comprado por um grupo de empresários canadenses e norte-americanos e vive melhores momentos.

Como acontece em qualquer lugar do mundo, clubes pequenos e médios têm torcida significativa apenas em sua cidade. Na Itália, fora os três grandes, Inter, Juventus e Milan, que tem torcida espalhada por todo o país – e de Roma, que tem se expandido, e do Napoli, pela quantidade de sulistas espalhados pelo Belpaese –, grande parte dos clubes tradicionais tem torcida apenas na sua cidade local e em outras cidades da província, sem ter alcance em toda a península. É o que acontece, por exemplo, com Torino, Fiorentina, Bologna, Lazio ou mesmo com Cremonese, Pescara, Bari ou Lecce. Quando passamos para os clubes de escalão mais baixo, isso aumenta. E aí, com a criação da Lega Pro, que correspondia à terceira e quarta divisões do país, é que as coisas começaram a piorar. Aqui no blog, Thiago Zanetin escreveu sobre isto em 2010, e reproduzimos alguns trechos abaixo.

>>> Saiba mais: A estrutura do futebol italiano não zela pela saúde financeira dos pequenos

“À medida que esses clubes, de cidades pequenas ou não-capitais de província, fechados nos confins de suas cidades, foram obtendo sucesso nos campeonatos amadores, tiveram de ser aceitos obrigatoriamente na Lega Pro, a porta de entrada do profissionalismo italiano. Consequentemente, puxaram o nível dos campeonatos para baixo, não apenas tecnicamente, mas em termos de negócios e visibilidade. E fizeram da categoria o que ela é hoje: uma soma de identidades diversas, sem apelo nacional. Mais do que um campeonato italiano, criou-se um torneio interprovinciano.

Como poucos times pequenos não suplantariam a estrutura necessária, começou-se a inflar a categoria de clubes, chegando a inacreditáveis 90 equipes (36 na Prima e 54 na Seconda Divisione). A falta de preocupação estrutural com o movimento de divisões é claríssima. Não existem parâmetros que determinem o porte que um clube profissional deve ter – patrimônio, torcida, apoio das instituições locais, possibilidades de exploração e prestígio da marca junto à cidade, à província ou a região, entre tantos outros.

Vincular a possibilidade do profissionalismo a uma mera conquista esportiva ou repescagem é assumir que o terreno de jogo comanda os bastidores do campeonato. Não se trata de fazer uma ode ao futebol moderno ou desmerecer os esforços dos clubes menores, proibindo-os de ascender ao profissionalismo. Trata-se de esclarecer outras coisas. Enquanto o Vado (primeiro campeão da Coppa Itália) não oferecer garantias expressivas de que possa voltar a ser profissional, garantias que devem ir além do terreno de jogo, então deverá continuar jogando, no máximo, até a Serie D”.

Resumindo, as divisões inferiores da Itália acabaram sucateadas por motivos políticos e foram palco de um show de pedidos de falência e repescagens. Os times faziam jogos demais, tinham custos demais com viagens e não tinham retorno. Eventualmente, mesmo atuando no vermelho, algumas dessas equipes conseguiam resultados no campo e algumas chegaram a jogar a Serie A – sobretudo nos anos 2000, quando muitos times tradicionais começaram a entrar em crise financeira e foram redimensionados. Foi o caso de Ancona e Treviso, que obtiveram o acesso à elite e acabaram entrando em bancarrota poucos anos depois. Antes disso, situação parecida ocorreu com Pistoiese, Pisa e Venezia. E, pior, com o Verona, que foi campeão em 1985 e faliu seis anos depois.

Falir fica ainda mais fácil quando um time sobe para uma divisão cujos custos não tem condição de arcar – ao menos por um certo período de tempo. Isto, obviamente somado a diretorias pouco eficientes e muita dificuldade de gerar receitas, seja porque o clube não tem boa divisão de base ou uma rede de olheiros que torne possível fazer dinheiro com venda de jogadores. Ou mesmo por razões mais comezinhas, decorrentes de uma elevação de despesas que nem mesmo ao fazer jogos contra times maiores serve de solução.

Já faz algum tempo que jogar em uma primeira divisão não é mais garantia de um modelo de negócio de sucesso, mesmo com a oferta de maior exposição nacional e internacional da marca, um maior valor por direitos de TV e maior renda com o público que vai ao estádio. Os dirigentes precisam ser mais criativos, precisam revelar mais jogadores – o que barateia o negócio e é fonte de lucro – e estimular trabalhos de longo prazo. Algo que Sassuolo e Chievo, por exemplo, fazem muito bem. As federações, por sua vez, deveriam estimular estas práticas e não o fazem bem. Muitas vezes, na verdade, empurram com a barriga e abrem brechas para soluções paliativas e nada efetivas.

Foi o caso, por exemplo, do Lodo Petrucci. A partir de 2004, um procedimento baseado em uma ideia de Gianni Petrucci, presidente do Comitê Olímpico Italiano – CONI, teve o intuito de desburocratizar falências. O dispositivo, que levou o nome do criador, concedia a novas sociedades formadas a possibilidade de herdarem o título esportivo da empresa que falira, mediante algumas condições: o clube/empresa falido deveria possuir méritos esportivos (ou seja, história construída no futebol profissional por um período significativo), sua diretoria não deveria ser ligada à anterior e o clube deveria, obrigatoriamente, iniciar a temporada seguinte uma divisão abaixo da que estava – até 2008 – ou duas – depois disso. Os jogadores ficavam automaticamente livres dos contratos e a marca do clube teria de ser reinventada – podendo ser readquirida anos depois, via processo judicial.

A prática, no entanto, suscitou críticas, porque, apesar das boas intenções, possibilitou que muitos empresários despreparados entrassem subitamente com o controle acionário de clubes somente para aproveitar a tradição daqueles falidos anteriormente, sem que houvesse o mínimo de organização societária. Tanto é que muitas das equipes que se aproveitaram da brecha judicial faliram novamente poucos anos depois.

O Lodo Petrucci foi abolido em 2014, com a reforma da Lega Pro e, hoje, se uma equipe chega a falir durante a temporada, e obedecendo aos ritos legais (saiba mais sobre a “falência controlada” aqui), pode preservar seus resultados esportivos. Em caso contrário, o reinício terá as divisões amadoras como ponto de partida.

Em tempo: a Lega Pro teve o formato alterado para a atual edição. Não são mais duas divisões, mas apenas uma, com 60 clubes, divididos em três grupos de 20, regionalizados. Sobem à Serie B quatro equipes e caem nove outras. Ainda não é possível verificar qualquer mudança na vida dos clubes que atuam por lá, mas o campeonato ainda parece muito inchado e menos regionalizado do que poderia ser. Continuaremos atentos.

A lista da bancarrota (dos anos 1980 até aqui, por ordem alfabética)

Alessandria (2003);
Ancona (2004 e 2010);
Ascoli (2014);
Avellino (2009);
Bari (2014);
Bologna (1993);
Casale (1993 e 2013);
Catanzaro (2006 e 2011);
Como (2005);
Fiorentina (2002);
Foggia (1984, 2004 e 2014);
Lecco (2002);
Legnano (2010);
Livorno (1991);
Lucchese (2008 e 2011);
Mantova (1983, 1994 e 2010);
Messina (1988, 2008 e 2014);
Napoli (2004);
Padova (2014);
Palermo (1986);
Parma (2004);
Perugia (2005 e 2010);
Pescara (2009);
Piacenza (2012);
Pisa (1994 e 2009);
Pistoiese (1988 e 2009)
Pro Patria (2009);
Pro Vercelli (2010);
Reggiana (2005);
Reggina (1986);
Salernitana (2005 e 2011);
Siena (2014);
Spal (2005, 2012 e 2013);
Ternana (1993)
Torino (2005);
Treviso (1993, 2009 e 2013);
Triestina (1994 e 2012);
Varese (2004);
Venezia (2005 e 2009);
Verona (1991).

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